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Publicado 15/03/2017

A mistura crack e gravidez, além de dobrar os riscos de sequelas pela dependência química, é desumana. A droga anula qualquer noção de amor, de cuidado e de maternidade
Por Ana Mary C.



Esta é uma história que já começa absurda. Diz sobre meninas que se tornam usuárias de crack, depois prostitutas, e ficaram grávidas. Diz também sobre mulheres que se atrofiam, que negam a si mesmas e se apagam das próprias memórias… que estão em um corpo sem dono, e se tornam grávidas. E da gravidez para a maternidade há uma distância que muitas usuárias de crack não conseguem alcançar.

A mistura crack e gravidez dobra os riscos de sequelas pela dependência química e anula qualquer noção de amor – consequentemente, de cuidado. “É uma mãe que não faz pré-natal, não se alimenta bem, não dorme bem”, observa a neonatologista da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac), Maria Francielze Holanda Lavor.

“O crack acompanha outras drogas”, atenta o fundador e coordenador do Instituto Volta a Vida (criado, em 1999, para o tratamento de alcoolismo e adicção), psicólogo Osmar Diógenes Parente. “Pesquisas recentes confirmaram que 51% das gestantes brasileiras fazem uso de álcool, 29% de tabaco, 7% de maconha e 1% de cocaína. E 8% fazem uso até o último mês. É um verdadeiro absurdo ”, soma.


Mais do que pesquisas concluídas, é o dia a dia no submundo do crack que revela consequências aproximadas do uso da droga na gravidez. “Existe pouca informação a respeito da mulher usuária de crack, principalmente, na questão da gestação. Mas se tem alguns trabalhos e se tem informações pela vivência”, considera Osmar Parente.
“A incidência de gestante usuária de crack pode ser considerada uma pandemia”, reforça a neonatologista Francielze Lavor. Cerca de três décadas depois de sair dos Estados Unidos (e, há pouco, sair dos becos), o consumo da droga deixa de ser apenas caso de polícia e se desdobra em problema de saúde pública, concordam especialistas.
“Em relação à gravidez, percebe-se um risco muito maior. O crack é uma droga que a abstinência é muito intensa, o uso é muito intenso. Tudo se torna mais intenso”, alerta o médico Alfredo Vieira de Holanda, um dos especialistas em Saúde Mental do Centro de Assistência Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) da Barra do Ceará. “São consequências devastadoras. Começa pela desnutrição, falta do sono, alterações pulmonares, cerebrais, hipertensão”, dialoga Francielze Lavor.
As sequelas passam de mãe para o feto. “O que a mãe fuma passa para a circulação dela, daí para a placenta e o bebê”, relaciona Lavor. A neonatologista lembra ainda que “o bebê está envolto em um líquido amniótico contaminado. Então, aquela absorção de crack, também pela pele do bebê, é muito acentuada”.
Sequelas
A cocaína (presente no crack, composto ainda por bicarbonato de sódio), explica Alfredo Holanda, provoca espasmos que diminuem a circulação de sangue e geram falta de oxigenação. “Ou seja, diminui a respiração do feto. Essa respiração diminuída vai aportar menos nutriente. É um risco primário”, complementa. “Fatalmente, você vai ter um feto desnutrido, anêmico”, conclui Francielze Lavor.
Ao escapar, o recém-nascido, algumas vezes, vai lutar contra si próprio. Más formações podem atingir o cérebro e gerar “bebês com hidrocefalia, meningocele. Pode ter má formação do intestino, estômago, esôfago. São os sistemas mais acometidos: os ossos, a visão, a audição, o trato gastrointestinal e o tubo neural”, sintetiza a neonatologista.
Outra das aberrações da dependência do crack são crianças que têm filhos. Há 18 anos na Meac, Francielze lida com a gravidez (e outros descaminhos) na infância. “Como as meninas começam a ser usuárias cedo, com 11, 12 anos, estão gestantes. Essas meninas de 8, 10 anos que entram no mundo do crack só têm o corpo para vender”, relata. A droga anula o sentimento.
Esta história diz de gente que desaprende a ser humano. “Tanto as mães (usuárias), como as crianças, nascem na rua, estão na rua, não têm assistência para se desenvolver. Sofrem de marasmo afetivo, abandono… Pessoas desvinculadas, verdadeiros zumbis, que perdem a noção de realidade”, sublinha Alfredo Holanda.
O submundo feminino do crack
Mesmo não mensurado com exatidão, o número de mulheres usuárias de crack tem crescido. E existem poucas certezas, em estudos pontuais, sobre as consequências do crack na gestação, para os filhos de dependentes. Esta série chama a atenção para o submundo feminino do crack, ainda vivido às escuras.
História
O crack tem cerca de três décadas de consumo. É obtido a partir da cocaína, velha conhecida dos especialistas em dependência química. A nova forma de consumo da cocaína, compreende o médico Alfredo Holanda, muda a absorção, distribuição e excreção da droga pelo organismo.
“Aumenta a sensação de prazer e diminui o tempo de droga circulante”, une o médico. “Esse tipo de situação é que expõe o usuário a essa frenética ação, que constrói esse contingente de pessoas usando crack”, explica.
Usar droga (a exemplo das drogas lícitas, como o álcool e o cigarro) não, necessariamente, conduz à dependência, pondera Alfredo Holanda. “A dependência é uma doença, onde a droga se torna necessária à vida do indivíduo”, conceitua. Há um “apelo psicológico e químico à substância”, complementa.


No crack “não existe o uso recreativo”, contrapõe o médico. “Todo mundo que usa é dependente”, afirma, mesmo se tentar driblar essa condição com pequenas quantidades e uso pouco frequente. “Essa desvinculação do indivíduo é, extremamente, rápida. É um choque social gigantesco. Os resultados estão se vendo agora, mas ainda não se viu tudo”, conclui Alfredo Holanda.

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